sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CÁTAROS - A morte em nome de Deus


 














Quarta-feira, 16 de Março de 1244, aos pés de um penhasco da região de Ariège (Midi-Pyrenees) nos Pirinéus, 225 homens e mulheres são entregues à fogueira. O seu crime? Eram Cátaros. Entrincheirados na povoação fortificada de Montségur, a 1.200 metros de altitude, e capturados após dez meses de cerco tinham-se recusado a abjurar a sua fé.

O fenômeno Cátaro estendeu-se por toda a Europa Ocidental desde o Norte da Itália até à Borgonha, à Champagne, à Renânia, à Flandres e até mesmo à Inglaterra. No Norte a repressão foi tão rápida e violenta que nem deu tempo para que se implantasse qualquer tipo de organização. Em Itália, em contrapartida, o movimento desenvolveu-se durante muito tempo em total liberdade. O mesmo se passou no Languedoc, mas aí a aventura Cátara haveria de desembocar no maior drama jamais conhecido por estas partes da Europa.

A sociedade feudal é uma sociedade em pirâmide. Divide-se em três ordens e na base estão os que trabalham, todo o povo de camponeses e artesãos. Na ordem imediatamente acima ficam os que combatem, guerreiros e nobreza. No topo os que rezam: o clero. Esta sociedade foi abalada, ao longo dos séculos XII e XIII por surtos de dissidência religiosa e contestação que, conscientemente ou não, faziam perigar esta ordem tradicional. Fogueiras e forcas tentaram em vão erradicar as heresias, nomeadamente a mais importante de todas, a dos Cátaros.

A igreja de Roma não podia aceitar que se rejeitasse a autoridade do seu clero, especialmente numa altura em que essa autoridade ainda se estava a afirmar: o valor dos seus sacramentos e os artigos fundamentais do Dogma respeitantes à criação, a Cristo e à Salvação. Por mais de dois séculos a Santa Sé empenhou-se na luta contra a Hydra Innumera: o dragão da heresia Cátara.

Para os Cátaros Deus era a origem de todas as coisas. Mas, ao contrário dos católicos que entendiam a dualidade Bem e Mal como algo externo a Deus, sendo este a fonte do Bem, os Cátaros entendiam que ambos, Bem e Mal, emanavam de Deus. Deus era o criador de todas as coisas e como tal não se devia procurar a origem do Mal numa outra entidade. Rejeitavam assim o conceito de satanismo ou a existência de entidades de onde emanasse o mal. Os Cátaros, de qualquer forma, dissociam o Bem do Mal, o material do espiritual. E toda a sua crença gira em torno desta dualidade entre espírito e matéria.

Os Cátaros chamavam a si próprios "bons cristãos" ou "bons homens". Existia uma distinção entre aqueles que recebiam o Consolamentum, uma espécie de ordenação, e os cristãos normais. O grupo dos "ordenados" constituía a hierarquia cátara onde se incluiam os prefeitos que, usualmente, pregavam aos pares: o "filho mais novo" e o decano.Havia um ou vários "filhos mais novos" que se tornavam prefeitos itinerantes e coordenados por um bispo que tinha à sua responsabilidade uma determinada área geográfica restrita. Nas vésperas da cruzda anti-cátara havia seis bispados: Agen, Lombers, Saint-Paul, Cabaret, Servian et Montsegur. Entre as "decanonis" mais importantes havia Moissac, Cordes, Toulouse, Puylaurens, Avignonet, Fanjeaux, Montréal, Carcassonne, Mirepoix, Le Bézu, Puilaurens, Peyrepertuse, Quéribus, Tarascon-sur-Ariège.

Os Cátaros não admitiam que o mundo vísivel, por muito belo que pudesse parecer, tivesse sido criado por um bom deus. Se a Igreja de Roma podia considerar-se satisfeita pela maneira como a repressão fora conduzida nos países do Norte aqui tinha pela Frente um grave problema. A sólida implantação da heresia cátara em França e nas cidades italianas. No fim do séc. XII e início do XII a base social do catarismo é já muito vasta. Toca já todos os sexos e classes sociais inclusivamente os grandes sonhores rurais. O catarismo era um grande fenómeno social na nobreza local. Uma vez que o papa tinha ordenado a confiscação de todos os bens e a morte dos heréticos e dos seus cúmplices, esta só era possível com uma grande cumplicidade social.

O Conde de Toulouse era então Raimundo VI. Era um grande senhor na medida em que administrava territórios mais vastos que muitos reinos da época. Possuia terras mais vastas que o próprio rei de França. Mas Raimundo VI tinha um carácter pacífico e tolerante o que na época não era considerado uma virtude num nobre especialmente pela Igreja. A Igreja pensa que um senhor deve saber impor a sua autoridade e a sua fé a todos os homens e mulheres que vivem sob a sua autoridade. Mas Raimundo é um homem que respeita a fé dos outros e que sente pelos cátaros alguma simpatia, mesmo não sendo cátaro e acreditando mesmo em ideias muito contrárias ao que os cátaros pregam. É um homem que gosta do amor e das mulheres. Teve várias mulheres. Por morte de algumas e porque abandonou outras, tinha amantes, filhos legítimos e ilegítimos. Se isto era escandaloso aos olhos da Igreja, aos olhos dos cátaros o seu comportamento era uma abominação. Mas, apesar de tudo, ele respeitava-os e protegia-os.

Houve, entretanto, um homem que tinha tentado combater pacificamente os cátaros e a sua religião dualista: um jovem cónego castelhano, o futuro S. Domingos. Alguns anos antes, Domingos obtivera do papa o reconhecimento da Ordem dos Frades Pregadores. S. Domingos nas suas viagens pela Europa fica tão chocado com a falta de liberdade de expressão como com a forma como o verbo é usado pelos vários povos europeus: com a espada. Defendia que a melhor forma de converter as pessoas ao catolicismo era pela força da palavra, pelo poder da expressão. E é assim também que encara as cruzadas e a luta contra a heresia, nomeadamente a cátara. Os êxitos de S. Domingos no combate à heresia cátara foram reais mas limitados. E, seja como fôr, não impediram a cruzada.

Esta guerra, contra os cátaros, que o rei de França não queria vão ser os barões do Norte a fazê-la. Normandos, flamengos, da liga de França, da Borgonha, Champagne e ainda alemães, bávaros e austriacos. Um exército maravilhoso e grande, como cantava um poeta da época. No comando um chefe temível: Simon de Monfort. Simon de Monfort é um guerreiro, um homem vigoroso que tem o sentido da batalha e o sentido estratégico mas é um Senhor modesto que possui apenas algumas propriedades na zona de Paris. Um homem com uma fé profunda mas também um homem demasiado brutal. Ora, acontece que uma lei papal dizia que a terra conquistada pertencia a quem a conquistasse (pagando alguns tributos à Igreja) e as terras cátaras era muito interessantes devido às construções aí edificadas e ao comércio mediterrânico a que davam acesso. Eram por isso terras ricas e cultivadas, terras que fascinam potenciais senhores. Para lém do desejo natural que Simon de Monfort poderia ter tem uma outra coisa que outros não possuiam para o colocar na posição de escolhido para tomar as terras do Sul de França: a benção da Igreja.

Mais tarde Simon de Monfort exorta os católicos da região a abandonarem a sua terra, abandonarem os heréticos antes que o seu exército avance. O conselho da terra reune e os habitantes da região decidem - católicos e cátaros - que não abandonam as suas terras e que, sobretudo, não estão interessados em mudar de senhor.

A guerra vai infligir um rude golpe à sociedade cátara mas também à sociedade da Aquitânia e do Languedoc no seu conjunto: católicos e cátaros à mistura. Não será apenas em Béziers que será massacrada gente que se calhar nunca tinha ouvido falar da heresia. Promovido a Visconde de Carcassone três semanas depois do massacre de Béziers, Simon de Monfort consegue em apenas três anos isolar completamente Toulouse. Em 1215, o IV Concelho Ecuménico do Latrão, a maior assembleia reunida até então pela cristandade romana renova solenemente a condenação da heresia cátara, reforça o direito repressivo, destitui Raimundo VI e outorga os respectivos títulos e domínios a Simon de Monfort. Será, no entanto, preciso muito mais que a guerra e os concílios para restaurar a unidade da Igreja, impôr a todos o baptismo católico e acabar com o baptismo de espírito dos heréticos. Os cátaros diziam que Cristo se ensombrou, escondeu a sua luz celeste à sombra da forma humana: "Senhor não tenhas piedade da carne mas sim da alma que ela retém como prisioneira".

Num belo dia de 1217, passando a vau o Garona, Raimundo VI consegue reentrar em Toulouse. Congrega em seu redor uma população numerosa que se subleva imediatamente e reconstrói as muralhas arrasadas pelos franceses. Nove meses mais tarde, ao cercar a cidade rebelde, Simon de Monfort tomba para sempre com a cabeça esmagada por uma bala de catapulta disparada por mulheres. "E a pedra caiu a direito onde devia cair. Em cheio no elmo de aço do conde acertou. E os olhos, miolos, dentes, fronte e queixada, tudo num ápice saltou. Caiu por terra. Morto. Lívido. Ensanguentado". O grande poema da Aquitânia, a canção da cruzada, retrata a alegria que se apossou da população de Toulouse e a dor que se abateu sobre o campo dos cruzados. A morte de Simon de Monfort é o sinal que faz disparar a guerra de libertação.

Os actores que sobram são Raimundo VI, o velho conde, Raimundo VII, seu filho e o jovem conde de toulouse, e o filho de Simon de Monfort: Amouris de Monfort. Há uma diferença enorme de personalidades entre Raimundo VII e Amouris. Raimundo VII era muito combativo, enérgico e tinha sido o primeiro homem a provocar uma derrota a Simon de Monfort enquanto que Amouris de Monfort era um homem sem a capacidade militar de seu pai. Numa determinada altura Amouris encontra-se com o rei de França e devolve todos os títulos e propriedades recebidas do rei. E, nessa altura, a guerra muda de natureza. Nos próximos anos a guerra de libertação religiosa transforma-se numa guerra de conquista de bens e propriedades para a coroa francesa.

Mas, por enquanto, a contra-ofensiva do Sul marca pontos. E a igreja cátara levanta de novo a cabeça por todo o lado. O quotidiano das prefeitos cátaros é uma vida comunitária, não encerrada em claustros mas vivida em casas situadas no coração das vilas e aldeias. À imagem dos apóstolos trabalham mesmo quando são de nascimento nobre o que entra em ruptura total com a sociedade feudal. O prefeito cátaro é um religioso que observa uma regra mas que também tem almas a seu cargo. É ao mesmo tempo um monge e um cura de paróquia.

Tal como na quaresma católica, o peixe ficava de fora das proibições alimentares. Acreditava-se então que nascia dentro de água por geração espontânea. Os cátaros rejeitavam o sacramento da Eucaristia. Para eles a hóstia não passava de um simples pedaço de pão. Jamais poderia ser o corpo de Cristo. No entanto, em memória da última ceia abençoavam ritualmente o pão quando o partilhavam.

À data da morte de S. Domingos, em 1221, os conventos Dominicanos já se tinham multiplicado por toda a Europa Ocidental. De Toulouse a Paris, de Valência a Bolonha.

Em 1227, a cruzada real está em marcha e pela frente encontram um país exangue devido a dezassete anos de guerra. Imediatamente a seguir à derrota da Aquitânia, em 1229, a Igreja Católica faz o balanço. Era necessária uma instituição que se encarregasse sistematicamente de reprimir e suprimir os heréticos. É a Inquisição que passa a exercer funções desde 1233 e que se encarrega desta missão. A Inquisição não só será totalmente independente do poder militar e político como também é totalmente independente das arquidioceses locais. Não sepende senão do Papa e de si mesma. A Inquisição é entregue aos Dominicanos pois estes são opositores teológicos dos cátaros.

O catarismo não era a primeira heresia que atacava a Igreja. A Igreja sempre tinha sabido desenvolver novos anti-corpos. O trabalho da Inquisição vai ser o de um confessionário obrigatório itenerante. Os inquisidores não são muito numerosos e a inquisição não é uma instituição rica, sobretudo no seu inicio. Os inquisidores têm diante de si uma tarefa imensa. Têm que passar por todas as localidades, cidades, vilas e aldeias e interrogar as pessoas. Assim, a Inquisição terá que funcionar como um tribunal itinerante. Todas as confissões eram tratadas como confissões em sede de justiça. Os documentos eram devidamente preservados, e por vezes copiados ou recopiados para serem enviados para outro local onde teriam melhor guarda ou onde se poderia dar seguimento com celeridade ao processo. Todo o trabalho tinha como objectivo conseguir descobrir quem eram os ministros heréticos de qualquer seita e afastá-los.

Mas no Languedoc a tarefa da Inquisição não foi fácil pois as populações eram particularmente hostis ao seu trabalho. A violência das populações reflecte a vontade existente de fazer surtidas para roubar os documentos conseguidos pelos Inquisidores. Foi o que aconteceu em Avignonet durante a noite da Ascensão de 1242. Era de Montségur o comando que tinha descido para assassinar os inquisidores em Avignonet. Alpendurado a 1.200m de altitude sobre um esporão dos Pirinéus, Montségur é, por excelência, o símbolo emblemático do drama cátaro. Pequena localidade fortificada erguida à medida das necessidades da igreja cátara servia de refúgio à hierarquia que fugia da cruzada e da Inquisição. Mais de 200 prefeitos e prefeitas e outros tantos laicos, entre os quais uma guarnição de uma centena de homens, tinham-se aí instalado.

Um ano após o massacre de Avignonet, o exército real, apostado em cortar a cabeça do dragão apertava o cerco a este sítio. A praça forte não se rendeu senão ao fim de dez meses. Após o massacre das duzentas pessoas em Montségur, há registos de cátaros, fossem da hierarquia ou laicos, que fogem e se refugiam na Itália, sobretudo na Lombardia. A paz que aí encontram não dura muito.

As hierarquias cátaras acabam por se verem constrangidas ao reduto fortificado de Cirlien. Cirlien será um novo Montségur. Assediada a praça rendeu-se a 1276 e duzentos prefeitos e prefeitas foram queimados. Nos Balcãs, em contrapartida, a heresia dualista, transformada em religião de Estado na Bósnia mantém-se até à conquista turca no século XV. Recusando aliar-se, tanto à Igreja de Roma como à Igreja Ortodoxa, os bósnios, se bem que de etnia eslava, passam para o Islão. Os seus descendentes são os actuais muçulmanos da Bósnia.

O exílio, a prisão, a morte. A Inquisição no Languedoc quase conseguiu atingir inteiramente o seu objectivo. Podia julgar-se a heresia cátara completamente erradicada quando em 1300 aparece no condado de Fois um prefeito de verbo afiado, Pierre Auhtier.

"As igrejas são as casas dos ídolos porque as estátuas dos santos que lá existem são apenas ídolos e todos aqueles que adoram ídolos são idiotas pois foram eles próprios que os modelaram com uma chave e outros utensílios de ferro".

Em 1300 qualquer coisa tinha mudado. A pregação de Pierre Authier já não alcançava êxito junto dos nobres e dos burgueses. Nesta altura, ao invés do que se passava nos primeiros tempos do catarismo, a heresia dualista colhe mais adeptos junto dos camponeses e das massas de trabalhadores. O catarismo torna-se uma religião popular. Pierre Authier, em 1284 é um homem sem problemas. Trabalhava para o Conde de Fois e tinha uma carreira promissora. Um dia, após uma conversa com o seu irmão Guillaume sobre a heresia descobre em si uma vocação cátara e resolve partir da região para a Lombardia onde encontra comunidades cátaras. Durante quatro anos fica na Lombardia a estudar o catarismo e ao fim desse tempo torna-se prefeito. Poderia ter ficado na Lombardia e continur aí a sua pregação. Mas decide voltar à região de Fois. Durante dez anos quase não vê a luz do dia uma vez que vive escondido em caves e grutas. Anda um pouco a pé apenas durante a noite e é à noite que faz os seus percursos das viagens que precisa fazer. Isto leva-o a ficar doente e fraco. E, no entanto, executa a sua decisão de voltar a Fois com uma força e uma fé extraordinárias. É verdadeiramente o último grande personagem do catarismo antes de Bernard Guy, o grande inquisidor tomar em mãos a tarefa de exterminar a heresia dualista.

Graças aos registos de Jacques Fournier, os registos da vida de certas aldeias é conhecida em todos os seus pormenores quase diários. Este cistersiense, bispo de Parmier foi um inquisidor fora do vulgar com uma paciência e uma curiosidade sem limites.

Fraternalmente
RR@mires.'.



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