Joaquim Gervásio de Figueiredo
(Destacado membro da Sociedade Teosófica no Brasil, autor de importantes livros sobre Teosofia e Maçonaria)
(Este artigo foi publicado originalmente na revista "O Teosofista" de julho-setembro/1967)
O título desta palestra pode sugerir a idéia de que existem duas
categorias de pessoas: as que vivem profundamente e as que vivem
superficialmente. E realmente é assim.
No famoso livrinho Aos Pés do Mestre, o Mestre as classificou de
maneira muito simples e sintética em "as pessoas que sabem e as que não
sabem". E acrescentou: "e o conhecimento é o que importa possuir... o
conhecimento do Plano de Deus em relação aos homens, e esse Plano é a
Evolução. Quando o homem o tiver visto, e de fato o conhecer, não poderá
deixar de cooperar nele, com ele se unificando, tal a sua glória e
beleza. Assim, pelo fato de possuir o conhecimento, ele está ao lado de
Deus, firme no bem e resistente ao mal, trabalhando pela evolução e não
com fins egoístas".
Notemos que o Mestre não se referiu ali apenas ao conhecimento teórico
do Plano, mas frisou o seu conhecimento de fato, consciente, que leva o
indivíduo a aplicá-lo na vida prática, a adotá-lo como norma de sua
conduta interna e externa em relação ao Plano de Deus. Se teoricamente o
conhece, mas o omite na prática, também essa pessoa pode ser
classificada entre "as que não sabem", isto é, entre os ignorantes que
vivem superficialmente.
Essas duas categorias formam as duas grandes e perpétuas correntes que
polarizam as mentes humanas em todo o mundo. De um lado estão
representadas pelo egoísmo, o materialismo, a superstição religiosa e o
negativismo filosófico; e do outro, pelo altruísmo, o espiritualismo
esclarecido e o misticismo. Figurando graficamente essas duas correntes,
e primeira traça uma linha horizontal, e a segunda, uma vertical, as
quais se cruzam na vida humana, mas não ainda perpendicularmente, de
sorte a formarem perfeitos ângulos retos entre si. Formariam então uma
cruz perfeita e dinâmica, uma cruz svastika por exemplo, símbolo de
equilíbrio e coordenação construtivos no conjunto da vida humana, como o
é na vida cósmica.
Não podemos definir essas correntes como sendo uma do Bem e a outra do
Mal, mas, antes, como expressões dos eternos pólos opostos da Natureza: o
pólo positivo, representando o Espírito e a Vida, e o pólo negativo,
representando a Matéria e a Forma, e cujo equilíbrio se busca em todo o
universo. Em outros termos, são perpétuas forças centrífugas cósmicas
atuando do centro para a periferia e as centrípetas atuando da periferia
para o centro, cuja equiponderância, mercê da interferência corretora
da poderosa Lei do Karma, mantém em equilíbrio todos os mundos e o ritmo
evolutivo da Vida e da Forma em todos eles.
Se essas correntes se equilibram na vida cósmica, o mesmo não ocorre na
vida da humanidade, onde primam mais pelo desequilíbrio e o caos. A
tendência instintiva do homem comum é lançar-se cegamente a uma dessas
correntes e opor-se diametralmente à outra, criando assim posições
extremas e antagônicas. Se toma o rumo horizontal, gera os cépticos, os
exclusivistas, os demolidores, os enfatuados dominadores de consciência.
Se toma o rumo vertical, prolifera os fanáticos, os crédulos, os
utopistas, os pseudo-salvadores e mártires, tão radicais quanto os
primeiros.
Qual o resultado desse cego extremismo? Ambos esses grupos sofrem
supondo-se felizes, e fazem outros sofrerem julgando torná-los mais
felizes. E com isso não cessam de gerar uma mesma e interminável cadeia
cármica de servidão e sofrimento para o mundo.
Tal foi o quadro doloroso que o compassivo Gautama Buda descrobiu no
momento de sua suprema Iluminação, e que ele resumiu nas suas famosas
Quatro Verdades, que são: a existência universal de sofrimento; a causa
do sofrimento, radicada no desejo; a extinção do sofrimento mediante a
extinção do desejo; e caminho para a extinção do desejo, e portanto, de
sofrimento. Então anunciou o seu Nobre Óctuplo Caminho, o "Dourado
Caminho do Meio Termo", o qual consiste e: Reta Crença, Reto Pensar,
Reto Falar, Reto Agir, Retos Meios de Subsistência, Reto Esforço, Reta
Memória e Reta Concentração.
Reta Crença também é interpretada como Reta Visão das coisas. Desse
primeiro passo dependem todos os outros, pois, como bem dizia Giordano
Bruno, se abotoarmos errado o primeiro botão de nosso colete, todos os
demais botões entrarão em casa errada. Esta Visão se entende também por
correto Discernimento, o qual o budista considera corresponder à
abertura das portas da mente.
Destarte, o Óctuplo Caminho que, em última análise, é uma fórmula muito
feliz e sábia para ensinar todos os homens a reajustarem sua conduta
interna e externa à operação natural e imutável de leis universais, foi a
grande Mensagem que a Luz da Ásia legou indistintamente a todas as
classes sociais de todos os tempos. Tal é o Dharma, a Lei, destinado a
fazer que os homens vivam em profundidade, segundo os mandatos de seu
Ego e não de seus sentidos. Citando palavras de C. Jinarajadasa, "uma
das mais maravilhosas concepções que o Senhor Buda deu, é que a lei
moral é exatamente a mesma que qualquer lei física. Quando proclamava
que 'o ódio não cessa com o ódio, mas apenas com o amor', Ele não
proferia um belo ideal, mas fazia um enunciado científico das leis do
universo, visível e invisível. Numerosos pensadores ocidentais
hodiernos, que são profundamente influenciados pelas concepções
científicas, começam a compreender que no Budismo se enuncia um tipo de
vida que está de perfeito acordo com a ciência".
No Óctuplo Caminho a Reta Visão é, pois, o primeiro passo na caminhada
para a Perfeição, que conduz ao Reino da Felicidade, é o farol a clarear
a Senda que serpenteia ao longo das densas trevas que de todos os lados
envolvem a Alma peregrinando para o Eterno. É a luz meridiana a
dissipar com seus potentes raios as nuvens que obscurecem as tateantes
passadas do fatigado caminhante, perdido na escarpada estrada do
entendimento da Vida.
Para nós, teosofistas, Reta Visão consiste em tomarmos consciência do
Plano do Logos para o seu Universo e das leis do desenvolvimento desse
Plano. Adquirir essa Visão e agir dentro de sua faixa significa viver
mais nas profundidades da vida do que em sua superfície. Corresponde a
"agir pela perpendicular", segundo a alegórica linguagem dos maçons.
Eqüivale a viver sabiamente, como manda o provérbio bíblico, pois "a
Sabedoria de Deus dirige suave e poderosamente todas as coisas".
A face da Terra passou a mudar mais rapidamente desde a metade do
século passado, quando o materialismo científico atingiu o seu clímax e
sua arrogante crista começou a ser dobrada pelas torrentes de
espiritualismo oriundas da Ásia, Europa e América, rompendo muralhas de
negativismos, dogmatismos e superstições. Despontaram então os fenômenos
espiritistas, as investigações psíquicas, traduções e comentários da
filosofia oriental e a magnífica obra de divulgação teosófica iniciada
por Helena P. Blavatsky, à qual vieram juntar-se outras figuras eminentes no
pensamento e na cultura, e que culminou com a fundação da Sociedade
Teosófica, a maior dádiva de todos os tempos oferecida ao mundo pela
Hierarquia Oculta. Operou-se desde então uma notável metamorfose na
mentalidade científica, religiosa, política e social em todo o mundo
culto. Essa metamorfose se estende já a todos os quadrantes do planeta, e
podemos estar certos de que não deterá a sua marcha, mas irá se
ampliando e aprofundando mais e mais no futuro e iluminando de mais
coloridas esperanças os ainda turvos horizontes da espécie humana.
Entre as camadas espirituais que se tem beneficiado desse poderoso
influxo renovador, cumpre-nos destacar o Misticismo, cujo renascimento
auspicioso se pode constatar em toda a parte, não obstante as vozes e
ações em contrário de setores reacionários que, embalados pela sua mente
concreta, estreita, preferem vegetar à sombra do passado. A guerra que,
em alguns setores, se teima em mover contra o surto do Misticismo, nos
traz à lembrança a triste recordação das implacáveis e cruéis
perseguições que no passado, do século IV a.C. ao século V d.C., se
moveram contra os Antigos Mistérios e Religiões, culminando com o
assassinato da brilhante neoplatonista Hipatia, quando então a Idade
Média estendeu o seu manto negro sobre o Ocidente, que dominou durante
pesados mil anos.
A onda devastadora levou de roldão também os primitivos gnósticos
cristãos, o Neoplatonismo, sem falar da destruição da florescente Escola
de Pitágoras e de outras brilhantes sociedades secretas. De sorte que
da Igreja cristã primitiva, fundada e mantida até o terceiro século sob o
signo de Iniciados como Paulo de Tarso, João Evangelista, Clemente de
Alexandria, Orígenes e outros luminares, só restam as pompas do culto
externo que desde então a dominam.
Felizmente o pior já passou, e se bem que ainda nos debatemos nas obras
de um Kali Yuga, idade negra, não subsistem hoje condições para o
ressurgimento de tão cruéis perseguições e sectarismos. Aqueles que
ainda zombam do Misticismo só demonstram, com isso, que não o estudaram,
e se o estudaram, não o entenderam, e para os que percebem e sentem
outras expressões de vida, esses pregam no deserto.
Mas o que é o Misticismo? Passemos a palavra ao ilustre teósofo Rohit
Mehta, em seu livro The Creative Silence, páginas 4 e 5:
"Misticismo implica uma direta - ou clara - percepção da Verdade. Em
todas as épocas, são os Místicos que tem sido os regeneradores da
humanidade. Quando quer que haja uma decadência da Retidão, um novo
impulso de Misticismo tem surgido invariavelmente, para trazer uma nova
inspiração para a vida do povo. Hoje em dia, em meio das trevas
envolventes, causadas pelo egoísmo do homem no emprego de poderes
colocados pela ciência física à sua disposição, tem havido aqui e ali um
novo raio de Misticismo, tanto no Oriente como no Ocidente. Com efeito,
a nova corrente religiosa do mundo segue a direção do Misticismo. Há
atualmente um acrescido interesse pela Vedanta hindu e pelo Budismo Zen,
ambos destacados exemplos do Misticismo filosófico e religioso. O
século vinte tem sido o de reaparição de numerosos místicos, grandes e
pequenos, em todo o mundo. E é o novo raio de Misticismo trazido por
estes homens e mulheres espirituais do mundo o que nos enche de
esperanças no tocante ao futuro da civilização humana.
"Escrevendo sobre o papel dos Místicos escreve o Sr. C. Jinarajadasa em
sua obra Nature of Mysticism: 'Misticismo é o aroma da floração em
terras tropicais, que somente se abre quando o sol se recolhe e depois
perfuma a atmosfera até um rapto extasiante. Longe do tumulto das ações,
além mesmo donde os pensamentos podem viver, o místico sente o perfume
da vida e faz de seu coração um cálice para captar esse perfume e
oferecê-lo a Deus e ao Homem. Felizes são os homens de que o mundo tenha
sempre místicos, pois os místicos são os filhos de Deus, que não
conhecem idade, cantam o nascer do sol na escuridão da noite, e vêem a
visão da Ascensão do Homem na tragédia de sua Crucificação".
E acrescenta Rohit Mehta:
"Ver a ascenção do Homem na tragédia da sua crucificação, eis,
realmente, a grande contribuição do Misticismo em todas as épocas. No
meio das frustrações e tragédias da vida, o homem necessita da mensagem
do Misticismo, mais do que nunca. É assim que os ensinamentos contidos
na Voz do Silêncio são os mais apropriados ao homem moderno, que
evidentemente está em busca de uma alma".
Entre as obras magistrais que H. P. B. legou ao mundo para lhe dar uma
visão do imenso e maravilhoso Plano de Deus e do papel que dentro dele
cabe a cada ser humano, parece-nos que a última e menor delas, A Voz do
Silêncio, que no conteúdo e no estilo pode figurar como a flor da
literatura teosófica, condensa a quintessência da Teosofia, concernente
ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do Eu Espiritual no homem. Sua
primeira edição apareceu em 1889, com a Chave da Teosofia (também um
resumo), e portanto, dois anos antes do passamento de H. P. B., havendo
sido, assim, sua última dádiva ao mundo, que, por isso, resume toda a
sua filosofia de vida. É uma tradução sua, feita de cor e acrescida de
anotações também suas, de certos fragmentos do misterioso Livro dos
Preceitos de Ouro, ligado ao sábio budista Aryasanga, uma eminente
encarnação anterior do atual Mestre Djwal Khul, segundo relata
Leadbeater em Plasticas sobre el Sendero de Ocultismo, volume II, onde
os interessados encontrarão informes mais detalhados sobre este
particular.
Segundo palavras de H. P. B., esse relatório espiritual "destina-se ao
uso diário dos Lanus (Discípulos) - aqueles que desejam palmilhar a
Senda do Desenvolvimento Espiritual". Conquanto ignoremos se entre nós
há ou não discípulos, na acepção teosófica do termo, pelo menos uma
modesta aspiração espiritual parece unir-nos todos nós, qual seja o
desejo de "palmilhar a Senda do Desenvolvimento Espiritual". Daí o
havermos escolhido esse livrinho para fonte inspiradora desta
descolorida palestra, com vistas a uma vivência mais profunda e intensa
daquilo que intelectualmente aprendemos.
Preliminarmente, Voz do Silêncio é uma pura expressão do Budismo
Esotérico, vale dizer, filosófico, que se pratica no Tibete, China e
Japão, ou da Escola budista Mahayana, o Grande Caminho. Tanto que,
segundo o bikku Arya Asanga, autor de uma edição sua, Jubileu de Ouro de
1939, Adyar, o estudo do Budismo Zen do Dr. Suzuki, a maior autoridade
contemporânea na matéria, pode bem ajudar a melhor compreender este
livrinho. Ora, o Budismo Esotérico, por sua transcendência, não está ao
alcance de toda a gente sem o devido preparo, e daí, talvez, o declarar
H. P. B. que tais ensinamentos se destinam ao uso diário dos Lanus; o
contrário, supomos, do Óctuplo Caminho, que se destina a todos os
indivíduos de boa vontade.
A Voz do Silêncio divide o Conhecimento em Doutrina da Cabeça ou dos
Olhos, que é o conhecimento intelectual, e Doutrina do Coração, que é a
sabedoria da Alma, a filosofia do auto-sacrifício em benefício dos mais
fracos. Doutrina do Coração é o ensinamento fundamental do Budismo
Esotérico e constitui o tema quase exclusivo da Voz do Silêncio, que
visa, não a criação de frios Arhats, mas, sim, de compassivos
Boddhisattvas. Logo de início ele dá a chave, a tônica, a filosofia de
todos os seus ensinamentos, nestas duas curtas sentenças:
"A mente é a grande assassina do Real. Que o Discípulo mate a assassina".
Matar a mente! eis o fulcro, o eixo central em torno do qual giram os
ensinamentos da Voz do Silêncio, pois onde fala a estridente voz da
mente inferior não se pode ouvir nem mesmo soar a harmoniosa e límpida
voz da Intuição, que todavia ressoa tanto mais poderosa quanto mais
vazia se encontra a mente. Entenda-se, porém, que matar a mente não
significa extirpá-la, eliminá-la de nossa natureza, tanto quanto não o
significa a máxima matar o desejo. Mas significa fazer com que a mente
deixe de ser agente, e sim simples instrumento; um instrumento dócil e
maleável à nossa vontade. Significa transcendermos o foco superior e bem
maior, que é o búdico. Significa abrirmos a mente e conhecermos suas
possibilidades e limitações, explorando as primeiras e banindo as
segundas, a ponto de conseguirmos realizar o ideal exposto quase no
final do livro:
"...tens de sentir-te Todo-Pensamento, e contudo exilar todos os pensamentos de tua Alma".
Aparentemente, não há algo de paradoxal entre matar a mente e tornar-se
Todo-Pensamento? E ainda, como tornar-se Todo-Pensamento e ao mesmo
tempo exilar todos os pensamentos de tua Alma? A dúvida se desfaz ao
compreendermos que no início do aprendizado a mente era o rajah (o rei)
dos sentidos, Procurador de Pensamentos, o que cria a ilusão, e que no
fim do aprendizado ela está reduzida a um mero e passivo veículo do
pensamento abstrato, dimanante do Ego. Antes ela dominava soberana, mas
agora obedece submissa ao raio proveniente de Alaya. E onde domina esse
pensamento superior e mais poderoso, todos os demais cessam.
Como conseguirmos essa total reversão de nossa mente? Eis o grande
enigma que o livrinho nos leva a deslindar ao longo do labiríntico
caminho através de seus Três Fragmentos, denominados, respectivamente,
as Três Salas, os Dois Caminhos e os Sete Portais, cada qual
caracterizando e ainda definindo um ensinamento capital a realizar na
via do Discipulado pelo aspirante que já percorreu triunfalmente os
demais degraus do Óctuplo Caminho. Mas esses degraus talvez tenha ainda
de recorrer acidentalmente, pois logo no limiar lhe adverte o Terceiro
Fragmento: "Anima-te, Discípulo; tem em mente a regra de ouro".
As Três Salas se chamam, a primeira, a da Ignorância (Avidya); a
segunda, a da Instrução (Probatória); a terceira , a da Sabedoria, e
depois desta última se estendem "as águas sem praias de Akshara, a
indestrutível Fonte da Onisciência; a região da plena Consciência
Espiritual, além da qual não há mais perigo para quem a atingiu".
Correspondem as Três Salas aos três estados ascendentes da Consciência,
referidos por Patânjali como Jagrat (vigília), Svapna (sonho) e Sushupti
(sono sem sonhos), e culminam no quarto estado, chamado o "Vale da
Bem-aventurança" por H. P. B. e Turyia (sono sem sonhos) por Patânjali, e
que a terminologia teosófica designa como o estado búdico da
consciência, ou o Iniciado no Plano Búdico. Em cada uma dessas Salas
alegóricas predomina uma das gunas ou atributos da Natureza: na
primeira, Tamas (inércia), na segunda, Rajas (atividade, luta), e na
terceira, Sattva (harmonia, equilíbrio), ao passo que no quarto há total
transcendência sobre as gunas: o Iniciado as domina soberano em vez de
estar a elas sujeito.
Relacionando-as com o espaço que nos envolve, a primeira Sala
corresponde ao mundo físico, o mundo da ignorância, dominado pelo fogo
fátuo dos sentidos, onde marca passos a maioria da humanidade ainda
identificada com o seu corpo físico e onde a Alma eleita aprende a sua
primeira lição de se dissociar do seu Não-Eu, condensado nesse corpo
físico. A segunda Sala é o mundo astral, o trepidante e volátil reino da
ilusão, onde impera "Mara", o prestidigitador rei dos sentidos
psíquicos tentando fascinar os incautos. É alegoricamente a Sala da
Aprendizagem, porque é onde cada Alma tem de travar a sua batalha
decisiva entre o Eu e o Não-Eu, entre o seu Eu Superior e o seu eu
inferior, até que triunfe e domine o primeiro. É o perigoso mundo do
psiquismo em todas as sua gamas, onde a "Alma encontrará os botões da
vida, mas embaixo de cada flor, uma serpente enrolada". Ganha a batalha,
o aspirante ascende à Terceira Sala, a da Sabedoria, correspondente ao
Mundo Mental superior, onde deparará com "aquele que lhe dará o ser", ou
seja, com o Mestre que o preparará para ingressar, pela Iniciação, no
"Vale da Bem-aventurança", o mundo búdico, para lograr tão estupenda
façanha, adverte-lhe solenemente o Mestre: "Cerra teus sentidos à grande
e terrível heresia da separatividade, que te afasta dos demais". É que
nesse glorioso mundo impera soberana a consciência da unidade da Vida.
Todavia, em cada uma dessas Salas, que caracteriza um estado especial
de consciência, o aspirante tem de realizar os três estados de
consciência, já que cada estado tem uma lição a dar-lhe em cada mundo
sucessivo e num nível progressivamente superior.
Em seu conjunto, os Três Fragmentos visam o desenvolvimento integral e
harmônico da Alma; isoladamente, cada um deles focaliza uma fase e uma
meta específicas, e por isso se chama um Caminho, até certo ponto
completo e independente dos outros dois.
O primeiro Fragmento, o das Três Salas, visa especificamente o
desenvolvimento e aperfeiçoamento da Concentração (Dhâranâ); é o Caminho
Preparatório, da Negatividade e Libertação, correspondente ao Grau de
Purificação dos Antigos Mistérios. É por excelência o Caminho da
auto-dissociação sucessiva, através das Três Salas, do Não-Eu, do Eu e
finalmente da própria idéia de dissociação. Torna-se então a cristalina
"gota dentro do Oceano", que "imerge o Oceano dentro da gota" no "Reino
da eterna Bem-aventurança".
O segundo Fragmento, o dos Dois Caminhos, tem por escopo o
desenvolvimento e aperfeiçoamento da Meditação (Dhyâna), através da qual
a Alma alcança a Visão e Descoberta do seu Caminho, o seu tipo, a sua
tônica, a sua qualidade, o seu Raio, enfim, o seu Dharma, com o qual se
deve identificar e unificar. Então, afastar-se de seu Caminho
equivaleria a "afastar-se de si mesmo". Assim harmonizado consigo mesmo,
o aspirante encontrará o seu Ego primeiro; depois, o seu Mestre, e
finalmente, o seu Dhyani, o Espírito Solar. Jamais, porém, descobrirá o
seu Caminho sem antes haver percorrido uma a uma as Três Salas
preparatórias e ingressado no "Vale da Bem-aventurança". A escolha
consiste em tornar-se um Arhat, e ingressar imediatamente nas delícias
do Nirvana, ou converter-se num Boddhisattva, o qual prefere renunciar a
esse Nirvana para ficar junto à cabeceira da humanidade sofredora e
ajudá-la a atingi-lo primeiro, partilhando com ela as glórias de sua
maravilhosa conquista.
O terceiro Fragmento, o dos Sete Portais ou Virtudes Transcendentais,
objetiva o desenvolvimento e aperfeiçoamento da Contemplação ou Transe
(Samadhi). Corresponde especificamente ao Caminho da Perfeição através
das Iniciações até chegar "à outra margem da corrente", o estado de
Arhat dos hindus e do Boddhisattva dos budistas, o qual no entanto, não
se deve confundir com o Boddhisattva referido nas obras teosóficas.
Entre os budistas designa um alto estado de consciência, e na literatura
teosófica um alto cargo na Hierarquia Oculta do mundo. Mas a este
estado só chega quem já passou pelas Três Salas e descobriu o seu
Caminho, e por isso, logo no seu limiar, diz o Discípulo a seu Mestre:
"Upadhya, está feita a escolha, estou sedento de Sabedoria ... Teu servo
está pronto para tua orientação".
Daí em diante, uma a uma, lhe são entregues as sete chaves de ouro que
lhe abrirão de par em par, sucessivamente, os Sete Portais que conduzem à
Suprema Iluminação, e que compreendem as Seis Virtudes (Paramitas de
perfeição) e mais a Sétima, que é da conquista da Sabedoria Espiritual.
As seis virtudes são: Dana, a chave da caridade e amor imortais; Shila, a
chave da harmonia nas palavras e ações; Kshanti, a chave da coragem e
paciência, que nada pode perturbar; Virâga, a chave da indiferença total
à dor e ao prazer; Virya, a chave da energia indomável, que abre
caminho para a Verdade, e Dhyâna, a incessante contemplação do Eterno.
Finalmente alcança Prajna, a Suprema Iluminação, e com ela a quarta
Iniciação, a de Arhan ou Boddhisattva.
Ouvir a Voz do Silêncio é ouvir a suave e penetrante voz da Intuição,
cuja chama de ouro só brilha quando a mente emudeceu e cessaram todos os
seus pensamentos vadios. Procurar ouvir essa Voz e obedecê-la, mesmo em
meio de tumultos e adversidades, é fechar a mente ao vozerio dos
sentidos in-feriores e mergulhar em seu interior para viver em
profundidade, e portanto, mais intensamente. Nesta época de tanta
fealdade e crueldade, se pudermos fazer da beleza e do amor a tônica de
nossa vida, estaremos criando condições para que a Intuição brilhe
através de nós e dos outros, e colaborare-mos no Plano do Logos de
aperfeiçoamento de seu universo. Poderemos mesmo entender melhor a
linguagem silenciosa e colorida dos anjos, e com eles privar.
Eis porque teósofos cultos consideram a Voz do Silêncio a mensagem mais
adequada a nossa época, a era da soberania da mente, porém em que esta
se sente frustrada com os problemas por ela mesma criados. Esses
problemas não podem ser resolvidos só pela mente, mas, sim,
transcendendo-a e apelando para a Intuição. Qualquer que seja o nome que
se lhe dê, a humanidade está à beira de atingir uma nova dimensão de
compreensão, e essa compreensão não é da mente, mas de algo que a
transcende. E é tão só à luz dessa compreensão que se podem resolver os
problemas do homem. Essa nova compreensão marcará a era de uma Nova
Civilização, com homens e mulheres de todo o mundo, dotados todos de uma
mais clara e plena visão das coisas.
A Voz do Silêncio é, pois, o livro da Nova Compreensão, o livro de
Buddhi, que só por si nos poderá ajudar a sentir e a viver mais
profundamente a vida superior. Ele coloca ante os homens e mulheres de
hoje uma filosofia da vida que os capacitará a rasgar o véu da mente e
encarar as indizíveis belezas do Mundo Superior, que é também o nosso
Mundo Interior.
Afinal, comparando o primeiro Caminho Preparatório, que é o da
Negatividade do Não-Eu e da libertação, com o terceiro Caminho, o da
Perfeição, achamos as seguintes correspondências, bem sugestivas:
1. As Três Salas preparatórias correspondem às três Iniciações posteriores, no Caminho de Perfeição.
2. Nas
Salas, o aspirante se liberta progressivamente de seu milenar
condicionamento às três gunas da Natureza: Tamas (inércia ou
resistência), Rajas (atividade ou luta), Sattva (harmonia ou equilíbrio
frios), e através das seis Paramitas (Virtudes transcendentais),
desenvolve os três poderes da consciência: Vontade, Amor e Atividade
criadora.
3. Os
sete sons místicos no primeiro Caminho pare-cem relacionar-se com o
despertar dos sete chacras, centros dinâmicos localizados no duplo
etérico e que servem de ca-nais entre certos centros do corpo astral e
gânglios ou plexos nervosos do corpo físico. Correspondem ao
desenvolvimento das Sete Virtudes Transcendentais, que no terceiro
Caminho abrem os Sete Portais para o Aperfeiçoamento. (Vemos aqui uma
analogia da abertura dos sete selos e do toque das sete trombetas,
referidos no Apocalipse, um livro tido como iniciático pelos antigos
Gnósticos).
4. Através
das Três Salas o aspirante ingressa no Vale da Bem-aventurança com a
mente inteiramente descondicionada dos fatores Tamas, Rajas e Sattva, e
alcança o estado de Individualização ou Autoconsciência Espiritual.
Enquanto que no Caminho da Perfeição, através das três Iniciações,
atinge o estado de Prajna, o da Iluminação e Perfeição Espirituais.
5. No
primeiro Caminho a tarefa do aspirante consiste em libertar-se dos
fatores condicionantes da mente, e no terceiro Caminho sua tarefa é o
desenvolvimento dos poderes inerentes ao seu Ego.
6. No
Caminho inicial e preparatório, o aspirante deixa de ser "outra coisa",
para, no Caminho final, ser "Aquilo que ele realmente é".
7. Entre
esses dois Caminhos permanece o segundo, qual farol a devassar toda a
natureza do aspirante e a iluminar seus passos nos demais Caminhos. É o
da Visão esclarecida, que o leva a descobrir-se a si e ao seu Caminho; é
o do Discernimento aguçado, que atua qual fiel equilibrador da balança,
sempre oscilante entre o seu Eu Superior e o seu eu inferior. É o ponto
de encruzilhada ou bifurcação dos dois Caminhos - o da Doutrina dos
Olhos e da Doutrina do Coração - em que ele faz a sua grande escolha e
opta pelo segundo.
Quando, enfim, ao longo da jornada, alcança sua Meta, torna-se Prajna, o
Supremo Iluminado, o coroado com e imarcescível glória da Sabedoria
Espiritual. Converte-se assim no Tathâgata. Aquele que segue as pegadas
da Senda percorrida pelos Budas de Compaixão. Passa então a ser uma
pedra viva na Muralha Protetora da sofredora humanidade, Muralha
constituída pelos seus sempiternos Guardiães, e pa-ra isso renunciando
às indescritíveis alegrias celestes e bem-aventuranças nirvânicas, que
tal é o preço de sua heróica escolha. E então faz o seu supremo voto:
"Enquanto todos os homens não se livrarem das tristezas e sofrimentos,
não en-trarei na Bem-aventurança do Nirvana".
E ao ouvir tão solene decisão, toda a Natureza em coro, segundo
palavras finais do famoso livrinho, irrompe exultante, numa insonora
aleluia:
Alegrai-vos, homens de Myalba (da Terra)!
Um peregrino regressou da outra margem.
Nasceu um novo Arhan!
Paz a todos os seres!
|
Fraterno Abraço
RuyR@mires.'.
Nenhum comentário:
Postar um comentário